As receitas do meu avô

José Carreira Vicente, meu avô, nascido e criado no campo, aprendeu a arte de produzir bebidas caseiras – vinhos, licores, aguardentes e tudo o que viesse à imaginação -, talento que empregou até o corpo o permitir. Mesmo com a sua saúde deteriorada, isso não o impediu de ir amiúde à sua adega espreitar os seus barris e os resultados de antigas colheitas até aos últimos momentos.



Eram 11h da manhã quando fui a casa dos meus avós no início de junho. A minha avó andava na lida doméstica; o meu avô, por sua vez, mexia um garrafão de plástico com uma colher de pau empoleirado no lavatório da cozinha, tentando manter firmes os pés na cadeira de rodas. Eram 11h da manhã e ele estava a fazer sangria: não demasiado doce, nem com demasiado sabor a vinho, estava no ponto. Esta é das recordações mais vivas que tenho dos seus últimos tempos.

Todos os anos em meados de setembro, os meus avós, os filhos e netos (eu incluída) aventuravam-se nas vindimas. A sua vinha estava numa encosta de um vale rodeado de fazendas e mato, e todos os anos o trator e toda a família andava para baixo e para cima percorrendo cada fila de videiras. Levávamos atrás um balde, uma tesoura da vindima e assim se passava um fim de semana.


A tradição das bebidas caseiras é antiga. A sua primeira garrafa de aguardente com uma pêra lá dentro tem a data de 1977. Quem o afirma é a minha avó: começou a produzi-las quando veio da Alemanha, depois do 25 de abril de 74. Alguém lhe disse para experimentar, e assim o fez, e ganhou-lhe o gosto. O último aguardente data de 2017.



Coleção de aguardentes com uma pêra dentro da garrafa
Reaproveitou o espaço da atual adega bem como o lagar já construído, comprou uma garrafeira, e ali fazia a sua magia. Desde vinho, a aguardente, água-pé, licores das mais variados frutas, a abafado, foi registando as receitas que lhe diziam aqui e acolá. As suas anotações só ele percebia: embora tivesse a ajuda da sua mulher e filhos, estes apenas seguiam as suas instruções.


Mas a tradição ficou entranhada em todos. Num ou outro ano o meu avô punha de parte uma quantidade de uvas para que eu e os meus primos as pudéssemos esmagar com os pés, à moda antiga. Também os seus filhos se habituaram às fases da vindima e da produção das bebidas. Quando a saúde o condicionou, foram eles que trataram da cura e da vindima.

Quando comecei a escrever o início desta estória não sabia que a sua personagem principal não duraria o suficiente para me contar os seus truques e segredos. O meu avô faria 78 anos na véspera das próximas vindimas. Era na sua adega e no meio das suas bricolages que ele encontrava o seu aconchego. Adorava ter a casa cheia e, no final de cada refeição, dava sempre a provar as suas bebidas. Das últimas coisas que fez foi arranjar um barril. E das memórias mais vivas - e que tão bem o caracterizam - que tenho dele é o momento em desafiou o seu corpo para fazer sangria às 11h da manhã. Nós, a família, vamo-nos esforçando por guardar a sua memória, bem como a sua vinha.

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