(Trabalho realizado no âmbito da disciplina Atelier de Jornalismo, em dezembro de 2017)
Cada vez mais tem crescido o culto da imagem e do corpo e o exercício físico faz parte da equação, seja por motivações estéticas ou de saúde. O corpo quer-se mais forte e preparado para enfrentar todos os obstáculos, ou seja, trabalha-se para ter um corpo musculado e tonificado. Mas os pesos e barras não são só para os homens. Elas provam que não são o sexo mais fraco competindo em desportos como CrossFit e Fisioculturismo.
Ainda é comum mulheres que iniciam uma rotina de actividade física recusarem usar muitos pesos com receio de ficarem musculadas. Ou melhor, querem ficar tonificadas, levemente definidas, mas não musculadas, porque quando se fala em musculação pode-se associar à fisionomia de Arnold Schwarzenegger. Mesmo sob este preconceito, Liliana Oliveira experimentou o Fisioculturismo e apaixonou-se pela musculação há sete anos, desporto pelo qual compete. Já Carina Simões pratica CrossFit há quatro anos e, para além de competir, é treinadora no espaço CrossFit Coimbra.
Liliana, de 38 anos, residente em Lisboa, sempre esteve ligada ao exercício físico. Com maior ou menor motivação, gostava de frequentar aulas de grupo. Até que pegou nos ferros. Desde então não os largou, deixando-se render pelos “resultados que trouxeram mês após mês”, como explica a atleta. Atualmente compete na categoria Bikini Fitness de Fisioculturismo, onde se consagrou campeã nacional nos anos de 2016 e 2017. Tal como qualquer desporto, implica disciplina, muita dedicação e, acima de tudo, vontade de se superar todos os dias. O cuidado na alimentação e esforço nos treinos reflectem-se em palco nas competições, que avaliam o “corpo firme, tonificado, simétrico, com músculos visíveis e delineados mas sem demasiadas marcações, aliados à presença e beleza transmitida em palco”, como explica Liliana.
A associação entre musculação e masculinidade é um dos estigmas. São ideias que “pouco ou nada têm de verdade”, garante a atleta. Não só mudou por fora, como por dentro: “corpo mais curvilíneo, tonificado, mais forte, mais preparado para o dia a dia, mais energia, menos problemas de saúde, mais vitalidade e mais auto estima”. Embora seja mãe e assistente de bordo por turnos o que, segundo a mesma, lhe pode desregular os horários, encontra forças no que chama de sua paixão: “o sentimento de realização que retiro depois de tudo feito compensa tudo.” Para isso, organiza todos os seus dias, em especial as refeições, porque no seu ambiente profissional não tem a possibilidade de comprar algo a meio do dia e também porque a sua dieta é mais ou menos restrita.
Quanto a Carina, de 26 anos e de Coimbra, o seu gosto por CrossFit levou-a a transmitir aos outros aquilo de que gosta. Tornou-se ativa no seu terceiro ano de faculdade, porque queria mudar o estilo de vida sedentário e boémio que estava a levar. Passados dois anos, durante o seu estágio curricular, rendeu-se ao CrossFit: “foi totalmente um escape ao stress daquele ano difícil”. Manz Cross Games foi a sua última competição, em Outubro de 2017, onde alcançou o primeiro prémio na categoria RX Feminino.
Esta modalidade consiste na “junção de movimentos monoestruturais (corrida, remo, saltar à corda), com movimentos olímpicos de halterofilismo e movimentos gímnicos”, realizados com alta intensidade. “O objetivo pode ser fazer o melhor tempo possível em determinada tarefa (For Time) ou completar o máximo de rondas/repetições possíveis em tempo limitado (AMRAP - As Many Rounds As Possible)”, esclarece Carina. Este tornou-se um dos seus grandes objetivos a longo prazo, o que a leva a treinar várias horas por dia com altas cargas. O seu corpo mudou, mas Carina afirma “que são mais notórias por quem está de fora”. Ao contrário do culturismo, que trabalha grupos musculares especificamente, as mudanças no corpo são uma consequência do tipo de treino e motivação que trabalha o corpo como um todo de modo a torná-lo mais funcional.
Ambas partilham, com maior ou menor frequência, a sua vida de atletas nas redes sociais. Incluem momentos dos seus treinos, fotos das suas últimas conquistas, frases e fotos motivacionais - transmitem a sua energia aos seus seguidores. Incluem, também, o seu corpo. Liliana confessa que já recebeu alguns comentários descontentes com a sua forma, isto é, com a musculatura. Mas apesar disso não se sente afetada, antes pelo contrário: “eu gosto do que vejo no espelho e do que vejo no palco e sinto naquele momento; sou muito segura do que faço”. Carina nunca foi confrontada com esse tipo de situação, embora admita que já lhe dirigiram comentários como “não quero ficar com as pernas musculadas como as suas”. Mas também ela se sente “mais confiante, mais forte e, melhor que tudo, mais saudável”.
Estará o ideal de beleza do corpo feminino a mudar?
Segundo Maria João Cunha, investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP), há uma diferença entre os padrões ideais de beleza nas sociedades contemporâneas ocidentais. Existe uma dualidade entre a representação social mediática do corpo do homem e do corpo da mulher: o homem quer-se grande, musculado, ao passo que a mulher se quer magra, mais pequena, estando aqui subjacente a ideia de fragilidade e fraqueza. Mulheres cujos corpos fujam a estes padrões acabam por desafiar o que é socialmente esperado do corpo feminino. Estas práticas podem ser consideradas estratégias de desafio, já que a estão a “ir ao encontro do que é esperado do corpo masculino.”
A investigadora afirma que os padrões corporais “são construções de género”, ou seja, são ideias construídas socialmente. “As regras sociais constrangem e condicionam a mulher a certos padrões” de beleza e de corpo ideal. No entanto, o desafio de mulheres como Liliana ou Carina pode traduzir-se em “sensação poder, no sentido em que, de forma simbólica, o desenvolvimento muscular pode combater a ideia de que a mulher é frágil”. Pode também dar-lhes a impressão de “serem mais fortes e de terem o controlo da situação”. Através do seu corpo transmitem a sua identidade e capacidades, que estão sempre em constate desafio e evolução.
Com efeito, há uma experiência de “sensações boas, de superação e de capacidade”, como diz Carina, que até tem um “certo orgulho” no seu corpo definido. Liliana partilha de um sentimento semelhante: “sou hoje uma mulher mais confiante, mais segura, com maior noção do que sou capaz e de que os limites estão apenas na nossa mente”. Aliás, ambas já referiram que não vivem na pele o preconceito, e tentam desvanecê-lo. “O meu conceito de beleza feminina mudou bastante desde que comecei a fazer CrossFit. Hoje em dia gosto de um abdominal definido e uma perna com músculos salientes”, confessa Carina numa entrevista em Outubro de 2017.
Mas estes casos não são singulares. Várias mulheres no seio do desporto, que não têm medo de pegar em pesos, partilham nas suas redes sociais que o “ferro” as tornou mais femininas por as ter ajudado a construir a sua confiança, auto-estima e gosto pelo que fazem, também intituladas de fit girls. Umas são mães, outras com trabalhos com horários, no mínimo, complicados, outras são simplesmente mulheres. Como diz o final do vídeo de Carina sobre a sua noção de feminidade, “Sexo fraco, isso era antigamente.”
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