(Sobre)viver num corpo estranho

Foi aos seis anos que Pedro (nome fictício) se apercebeu que era diferente dos meninos e meninas da sua idade. Biologicamente tem corpo feminino, embora nunca se tenha identificado com o mesmo, nem com o género correspondente. Aos vinte anos foi em busca de ajuda e de soluções para superar o transtorno de identidade de género.


Qualquer pessoa que o veja identifica um rapaz. Mas quando vai à casa de banho vai à das raparigas. Usa roupa da secção masculina, t-shirts largas, mas o peito típico do corpo feminino denuncia a biologia do corpo com o qual não se identifica. Sempre se conheceu assim, como uma espécie de “maria-rapaz” que na verdade é um rapaz, hoje com 20 anos. Já sabe, inclusive, que nome melhor se adequa à sua personalidade.
Para a sua família ser maria-rapaz sempre foi encarado como uma fase… que ainda hoje perdura. Habitou-se aos olhares estranhos e às bocas. Nunca aceitou o corpo em que nasceu. “Eu não preciso que ninguém me aceite, eu preciso que as pessoas me respeitem.”
Quando entrou para a primária, aos seis anos, percebeu que contrastava com os restantes meninos, que não se enquadrava. A não-relação com o corpo afetou todos os aspetos da sua vida. Desinteressou-se pela escola, pela família e tornou-se frio. “Deixei de acreditar que a minha vida fazia sentido, abdiquei de tudo.”
O início da puberdade, com as consequentes alterações no corpo, foi uma altura particularmente difícil. Há uma separação entre ele e o corpo. “Foi uma grande luta para usar soutien, demorei muito tempo a aceitar”, talvez por ser uma parte mais saliente do corpo que o denunciava, confessou. Começou a mutilar-se e inclusive tentou suicidar-se: “era uma distração para a dor emocional, a dor emocional é muito mais forte do que a dor física”, acrescentou. Hoje já não se auto mutila, já frequenta uma psicóloga, no entanto ainda evita o espelho.
Esperou até aos 19 anos para procurar ajuda. Não se sentia a viver, mas sim a sobreviver. Numa noite, daquelas em que se bate mesmo fundo, pegou no carro às quatro horas da madrugada para se deslocar até ao consultório do seu médico de família, onde esperou até de manhã. Assim que foi atendido desabou a chorar, e logo foi diagnosticado com uma depressão. Procurou depois a ajuda de uma psicóloga, que deu nome à sua condição: transtorno de identidade de género. A depressão fora apenas uma consequência.
Quando falei com ele disse-me já ter pensado nas soluções que quer adotar: uma mudança total de género e de sexo. Submeter-se-á tanto a uma operação – remunerada pelo Estado -, como à mudança de nome e de género no Cartão de Cidadão. No entanto, o que lhe mais lhe custa nestes dias é a espera e a ausência de mudanças.
Aos poucos vai contando aos que lhe são próximos. Os pais ainda estão num processo de aceitação e compreensão. Considera que custa especialmente à mãe, afinal, “saiu dela uma menina”. Quanto ao pai, viver com ele não é uma opção aquando da mudança. “O ambiente é um bocadinho mais retrógrado”, e por isso, tenta também compreender a posição dos progenitores.

O maior receio é que o seu círculo de amigos não o aceite e respeite, porque, no final de contas, veem-no como uma maria-rapaz. Contudo, está ciente de que a verdade é o melhor caminho. Apesar de nunca ter feito planos para a sua vida, tenta trabalhar esse aspeto, começando por contar a sua verdadeira história, o seu verdadeiro eu, e por pensar no que virá a ser o seu futuro eu, não só mais em paz consigo mesmo, mas também mais paciente.

O que é o transtorno de identidade de género?
Uma pessoa transgénero não se identifica com o sexo com que nasceu, ou seja, não se identifica com o seu corpo nem com o género correspondente. O mesmo é dizer, se nasceu com corpo feminino, identifica-se antes como sendo do sexo masculino. A partir de junho deste ano a Organização Mundial de Saúde deixou de classificar a transexualidade como um disturbio mental.
Podes saber mais sobre a transexualidade num documento da Associação ILGA.

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